segunda-feira, agosto 03, 2020

a inclemencia da morte

"No dia seguinte ninguém morreu." Com essa frase começa o romance "As Intermitências da Morte", de José Saramago. Toda noite, ao ouvir o novo número de mortes e o total de mortos pela Covid-19 em nosso país lembro de Saramago e de sua profunda e instigante narrativa onde a vida, a morte, o amor e nossa razão para existir são colocados sob uma visão, às vezes cáustica, às vezes até hilária.
Naquele país imaginário grassou o medo de viver para além do suportável, quando cidadãos doentes, em estado terminal, eram mantidos vivos porque a Morte recusava-se a cumprir seu dever de levá-los dessa para melhor.
Em nosso país real, a Morte deve sentir-se assoberbada ao ter que recolher, a cada dia, cerca de um milhar de almas dos mortos pela pandemia, além daquelas que lhe caberia recolher normalmente de cidadãos e cidadãs mortos por outras causas. O medo em nossas plagas não é o de vegetar para sempre, mas o medo de ser acometido de uma doença que nega a seus portadores a convivência com a família, abala as relações sociais, põe à prova o amor pelo próximo e mostra sem pudor a precariedade das nossas existências.
A esperança sempre acalentada em nossos corações e mentes é de ouvir, sabe-se lá quando, a frase: "Ontem ninguém morreu da Covid-19."

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