domingo, dezembro 31, 2006

Cena de Ano Novo

Algumas cenas ficam em nossas mentes para o resto de nossas vidas - para o bem ou para o mal. Alguns momentos em minha vida criaram marcas indeléveis, imagens recursivas que aparecem nas horas mais insólitas.
Existe, nessa coleção de memórias, uma cena inesquecível de Ano Novo; os fogos do 'seu' Sebastião. Era nos anos cinqüenta, não me lembro qual deles. Tínhamos um vizinho, ainda lá em Nilópolis, quando o campo de provas do Gericinó era nosso quintal sem fim; era esse vizinho o 'seu' Sebastião da Paixão, nome rimado, coração bom de quem era pai inúmeras vezes e suava atrás de um volante de caminhão, entregando açúcar para ganhar o sustento da família grande. Mas sempre tinha algum para os fogos de Ano Novo. Sua especialidade eram as chamadas flechas: foguetes presos à ponta de longas flechas de junco seco. Aquele mesmo material usado na época para fazer gaiolas, quando não se podia obter varetas de bambu.
Nas noites de 31 de dezembro, quando o tempo estava bom - e isso significava calor e pouco vento, às vezes até a Lua ajudava, corríamos feito loucos pelos terrenos baldios atrás das flechas caídas com os foguetes ainda quentes e soltando fumaça da pólvora queimada na subida veloz. Era como uma competição para ver quem conseguia pegar mais flechas, que no caso faziam as vezes de troféus.
Cada flecha levava um morteiro de um tiro; na verdade um estrondo enorme para nossos ouvidos infantis.
Nesse exato ano a que me referi acima, houve muita chuva. Na hora dos fogos, ou seja, pouco antes da meia-noite, caiu um temporal de verão, com relâmpagos e trovões; chuva da grossa, firme e parecendo que ia demorar a passar. Estávamos eu, meu irmão que eu chamo de 'segundo' (sendo eu o mais velho e portanto o 'primeiro') e minha mãe, esperando dar meia-noite para comemorar a virada do ano. Meu pai, como sempre, cochilava em uma das cadeiras da sala, embalado pelo som da chuvarada - cansado do trabalho de comerciante que na época já não tinha folga nem nas vésperas das festas.
A meia-noite se aproximava e eu estava curioso com a solução que 'seu' Sebastião daria para a inusitada situação. Soltar os foguetes com chuva, ou esperar que estiasse; mas então já teria passado a hora certa e costumeira para soltar seus fogos. Para mim era um dilema. Mas não foi, para ele.
Quando faltavam uns cinco minutos para a meia-noite, ouvimos o rugido da primeira flecha a subir, mesmo em meio ao som da chuva, e depois o som do primeiro morteiro.
Minha mãe abriu a janela do seu quarto que dava para o quintal e ficamos ali, os três abraçados a olhar as flechas a subir, ouvindo as explosões dos morteiros enquanto a chuva molhava nossos rostos. Assim, 'seu' Sebastião cumpriu seu horário, sem vacilação e os fogos seguiram por mais uns dez minutos.
Abraçamo-nos em meio aos respingos da chuva e nos desejamos Feliz Ano Novo em meio ao som e dos clarões dos pontuais fogos do 'seu' Sebastião da Paixão.

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